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Mantinha do Ego

Pequenos retalhos que cobrem o alvorecer de dois quotidianos...

Mantinha do Ego

Pequenos retalhos que cobrem o alvorecer de dois quotidianos...

14.08.18

O vazio do horizonte


Lúcia Costa

Há dias fiquei estéril. Estéril, porque a realidade desapareceu. Estéril de palavras, porque o que aconteceu não é descritível. Só quem esteve presente e sentiu o calor, o barulho, o ataque desenfreado dos titãs ao nosso pequeno paraíso é que compreende, em todo o seu entendimento, o que aqui se passou.

Fica-nos na pele, no sentimento, não há expressões nem teorias de entendidos que possam justificar o que quer que seja. Sempre pensei que quando acontece uma catástrofe que as pessoas que a sofrem estão minimamente preparadas para isso, que uma força superior lhes confere poderes para que possam aguentar. E foi assim. Só assim se explica o que aconteceu àqueles que tiveram coragem de se digladiar e confrontar o fogo.

 

Quem nasce em Monchique tem seiva a correr nas veias, pactua com o milagre da fotossíntese. Acorda com o cheiro das tílias e dos castanheiros e à sombra dos sobreiros. Sente o cheiro dos eucaliptos que nos faz respirar como se fosse o primeiro sopro da criação. Todos os anos a natureza faz o seu trabalho. Mas quem é de Monchique também sabe da existência de um inimigo poderoso. Que espreita, que nos persegue a cada verão. É como um grilhão que carregamos desde junho a outubro, até caírem as primeiras chuvas. Aí, o cheiro a terra molhada faz-nos respirar de alívio. Sobrevivemos mais um ano. Mas este ano fomos atacados. E atacados com uma força e veemência que desconhecia. Fomos agredidos no coração. No único local que pensávamos seguro: a vila. Foi uma luta de David contra Golias, pequenos grandes heróis que se colocaram à frente do maior titã de todos. Que consumia e avançava com passos de gigante para mais perto e cada vez mais perto, disparando fogo em todas as direções. Urrava, grunhia, atingia metros e metros de altura e rodeava tudo. Ninguém estava a salvo. Ninguém dormia. Até ao raiar de sol. Depois, um manto espesso de fumo envolveu-nos. Pesado. Quente. Sufocante... E este foi o começo do quarto dia.

Para mim, foi o dia da fuga. Não fui capaz de aguentar outra noite em branco com o horizonte em tons de vermelho incandescente e em labaredas ocultas pelo fumo. Saí de Monchique em direção ao Alferce, pela única estrada aberta ao trânsito. Uma capa de cinza cobria tudo. Nos primeiros quilómetros tentei abstrair-me da desolação, do fumo, do cheiro e das profundas raízes que ardiam e fumegavam. E pensei, eu aguento. Não pode ser tão mau. Ali à frente melhora... No entanto, na última curva antes do Alferce, uma lágrima escorreu-me pela face. A abstração tinha falhado! Respirei fundo e continuei. Voltar não era opção. Passámos por fios elétricos caídos, presos por umas pedrinhas que os mantinham esticados, pelo Barranco do Demo em tons de negro, por cabos a arder, pela encosta da Barragem de Odelouca em chamas. De certa forma, o queimado à nossa volta dava-nos uma sensação de segurança. Se já ardeu, o fogo não voltaria. Mas este fogo não foi como os outros. Este fogo foi conquistando cada palmo de terra, cada centímetro. E andou para trás, para a frente, ziguezagueou, saltou, correu e projetou-se por todo o lado.

 

 

Regressei apenas na quinta-feira. Pela mesma estrada. Já nada ardia. Tudo cinza. Tudo cheiro. A partir desse momento comecei, desesperadamente, a procurar pontos verdes. Encontrei alguns. Raros. Frágeis. Quase envergonhados. A vila nunca mais vai ser a mesma. As pessoas ficaram com uma cicatriz profunda para sempre. Frequentemente compara-se este incêndio ao de 2003. Apregoa-se não ter havido vítimas mortais. Ajuda-se com tudo o que há à disposição pessoas e animais. Estão a ser distribuídos kits, fazem-se avaliações, balanços, briefings, reportagens, passeiam-se homens do exército. Visitam políticos. Dizem que são 10 milhões de euros de prejuízo. Serão, de facto, ou até mais do que isso. Mas esses 10 milhões não vão restituir as sobreiras onde brinquei na infância, onde eu imaginava a existência de fadas e gnomos da floresta. Não substitui o olhar triste das pessoas que viram desaparecer o seu horizonte. As lágrimas de alguém que já não tem tempo de ver esses 10 milhões de euros a serem aplicados. E quando eu lhes respondo e interpelo tentando pôr toda a minha assertividade no «não podemos desistir. Não podemos baixar os braços». Um bocadinho de mim deixa de acreditar. Não houve perdas de vidas humanas. Mas o prejuízo é superior aos milhões de euros. Houve o dano da Mãe Natureza, da memória, da felicidade, da sombra, do horizonte. As árvores morreram. Algumas para sempre. Nunca nada vai voltar a ser o mesmo. Este fogo deixou ficar casas, pessoas, algumas hortas, animais, mas morreu o ar, a serenidade, a calma, e as fadas e os gnomos da imaginação.

Claro que vamos levantar os braços, claro que vamos replantar, claro que a Natureza vai fazer o seu trabalho, claro que a próxima primavera trará a esperança. Mas fica um vazio. Um hiato. Um desejo que o tempo passe rápido para que o verde regresse ou que recue e que isto nunca tenha acontecido.
Tenho 37 anos e, na melhor das hipóteses, se não arder tudo outra vez, só aos 67 é que terei hipótese de ver as copas das árvores transformarem o azul do céu em verde. Nunca como agora. Nunca como na infância. Nunca como na imaginação.

 

 

 

 

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